"A mulher junta os ossos roídos do frango num grande monte ao canto da mesa e arrota ruidosamente." – são belas frases como esta que podemos encontrar ao longo deste compêndio de contos.
Lá consegui contrariar a minha panca de só ler livros meus – ridículo e dispendioso, eu sei – e li este emprestado por andar a reclamar que estou numa fase em que só me apetece ler histórias frias e cruas, como sushi. Na verdade, se o livro não me tivesse sido gentilmente emprestado e, por outro lado, eu tivesse simplesmente pegado nele, por acaso, numa livraria qualquer, estou certa que não o traria comigo, isto porque as primeiras páginas são tão verbalmente violentas que se quisesse transcrever apenas uma única frase, este blog teria de passar a ter uma bolinha vermelha no canto superior direito.
Basicamente, trata-se de uma colecção de pequeníssimas histórias onde o mais absurdo ou perverso acontece sempre, o que faz com que o desfecho seja sempre demasiado previsível. Sim, são frias, sim, são cruas, mas não encheram as medidas do meu vazio glaciar. De qualquer forma, serve o presente post para inaugurar a minha apreciação de um livro cujo autor é do sexo feminino. Quando terminei de o ler, pensei que gostava de ter a experiência de ler um livro do qual desconhecesse o sexo do autor, isto porque dei por mim muitas vezes a dizer, enquanto percorria as páginas deste livro – vê-se mesmo que é mulher! E atenção que a escrita de Rosa Liksom está muito longe de qualquer estereotipo de escrita de mulher. Muitas vezes o narrador, e protagonista principal do conto, é um homem; geralmente um homem violento e amargo, mas que ao transparecer a sua virilidade nota-se que só pode ser uma mulher a escrever - ou então sou eu que tenho a mania que consigo captar sempre tudo. Aqui fica um exemplo do que estou a tentar dizer:
"Deixei-a porque queria viver sozinho. Não suporto os cheiros das outras pessoas, nem as caras que fazem, nem a maneira como se sentam, à mesa ou em frente da televisão. Quero viver sozinho porque não preciso de ninguém, muito menos de uma mulher que faz de tudo um problema. E apesar disso, estou aqui sentado neste sofá, pelo sétimo dia, e não penso em mais nada a não ser nela. Não tenho um momento de sossego, porque ela está presente o tempo todo. Isto remexe-me de tal maneira que nem dormir consigo. O coração bate-me da nuca às pontas dos dedos."
Como nota final, devo dizer que achei curioso o uso excessivo da palavra seios ao longo das linhas destes contos o que, na minha opinião, faz com que a escolha da imagem da capa esteja muito bem conseguida.
8 comentários:
Parabéns por esse breakthrough, já podes poupar umas coroas para as férias!
Mas agora diz-me, como é que conseguiste? Essa coisa de agir como as "pessoas normais" e ler livros emprestados não é assim tão fácil como se diz por aí!!!
Anos bissextos provocam reacções estranhas em mim!
A primeira vez que li o livro - há mais de 10 anos - a violência da escrita marcou-me muito. Andava - e ainda ando - à procura d'A escrita, algo que não seja apenas um encadeado de palavras num livro que é preciso folhear mas algo que se confunda com a vida porque nos entra pela carne dentro, palavras que se fundam e sejam um natural prolongamento do nosso corpo. E estes contos tiveram o condão de me fazer sentir isso: à medida que as lia, as palavras cravavam-se na minha carne, literalmente. Continuo a pensar que são contos frios, cruéis, terríveis que despem e revelam a nudez dos "cadáveres adiados que procriam".
O Paraíso não é necessariamente um lugar de felicidade; não é, aliás, nenhum lugar, é um estado. A catequese que nos ensinaram está errada. Isso não impede que para alcançarmos o nosso Paraíso não tenhamos de fazer uma viagem e nessa viagem reconhecermos que talvez seja melhor "live fast, die young, leave a nice corpse". Ou talvez nem isso interesse absolutamente nada.
Há pouco tempo reli algumas páginas. Continua lá o essencial embora tenha encontrado alguns artifícios de escrita/linguagem, que de algum modo roubaram algum do impacto do livro. Fora isso ainda me magoa a pele.
Olha que aquilo que ela escreveu podia ter sido perfeitamente escrita por um homem. O remate final talvez não ocorresse com facilidade, mas é possível. Basta que o autor não tenha rodeios do que sinta e se exprima em pleno para o papel. É nesse ponto que é indestrinçável o sexo dos escritores e que podem escrever tudo o que lhes vem à cabeça - porque são livres.
Também não sei se é mania, mas regra geral não gosto de livros escritos por mulheres (e procuro evitá-los já), pelo menos nesta fase. Parece que há sempre ali qualquer coisa que não me agrada nas descrições, mas na volta é mesmo mania :)
O que é certo é que todos os meus escritores preferidos são homens.
Hugo
http://dottoratoamilano.blogs.sapo.pt
tromps:
fiquei a pensar n'A ESCRITA que nos entra pela carne dentro; fiquei a pensar no que procuro nos livros; fiquei a pensar porque é que me apaixono por uns e acho banais outros, sabendo à priori que muito depende do momento em que os leio. Obviamente que procuro sensações/emoções novas (tenho grande dificuldade em distinguir estes dois substantivos) mas talvez também procure mais do que isso... tenho de meditar mais sobre o assunto :)
hélio:
continuo crente que um olhar atento (talvez não o meu) irá sempre distinguir reflexões masculinas de femininas.
hugo:
infelizmente, pois na verdade isto sim, entranha-se-me na carne, tenho de subscrever o que dizes, o que de todo não me agrada. De qualquer forma continuo incessantemente à procura de me apaixonar verdadeiramente por a escrita de uma mulher :)
Tudo o que vocês disseram sobre livros escritos por mulheres arrepia-me um bocadinho. Nos meus tempos de juventude, adorei a Isabel Allende, e neste momento, entre os meus favoritos há várias mulheres notáveis: a Marguerite Yourcenar na prosa, e a Emily Dickinson e a Florbela Espanca na poesia. Destas todas, talvez só nos versos de Florbela Espanca se note traços de terem sido escritos por uma mulher — mas foi porque ela assim o quis.
Num "julgamento" muito rápido - o que não quer dizer precipitado porque é fruto de outras razões achadas em outras alturas - não acho sentido nenhum em assumir a existência, ou sequer persistir na hipótese, de haver uma escrita feminina e outra masculina. Para servir de suporte a uma discussão deste tipo só me lembro dos livros da Margarida Rebelo Pinto ou da Fátima Lopes. Querem ir por aí? Na minha memória permanece indelével a descoberta de Yourcenar, assim como permanece a atracção de a Ela voltar.
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